22/11/2018
Transformação de escolas Articulação AEE nas escolas
Familiares de escola rural realizam sonho de voltar a estudar
Organizados em uma Comissão Mista, moradores da comunidade de Retiro Feliz, Tremembé (SP), se mobilizam para implementar a EJA
O sonho de Antônia Dionisia Couto, mais conhecida na comunidade de Retiro Feliz como Dona Nica, era ler para as pessoas com fluidez, sem vergonha de ficar lá na frente da turma. Quando a EMEF Nicolau Couto Ruiz decidiu se transformar em Comunidade de Aprendizagem, em 2014, o seu sonho pôde se somar a outros tantos sonhos de vizinhos e parentes que também desejavam voltar a estudar.
A diretora da escola, Ana Maria Santana, relata que o pedido pela implementação da Educação de Jovens e Adultos (EJA) “veio forte nos Sonhos das famílias”. Por meio da Comissão Mista, os familiares se juntaram e foram até a Prefeitura de Tremembé para conversar diretamente com o prefeito e levar o projeto adiante.
“A escola ficava fechada à noite e muitas pessoas não sabiam ler, não sabiam escrever. A gente estava precisando!”, explica Dona Nica, que foi uma das articuladoras da movimentação pelo EJA. Ela diz que, mesmo sabendo ler um pouco, tinha dificuldade para ajudar o neto nas tarefas e que não se sentia totalmente segura para mediar os Grupos Interativos dos quais participava desde o início do projeto.
Quando criança, Dona Nica estudou até a quarta série, atual quinto ano, numa escola no centro de Pindamonhangaba. Naquela época, tinha que pagar passagem, uniforme, material e os gastos já não cabiam mais no bolso da família. Depois que os irmãos se casaram, ela resolveu interromper os estudos e ajudar o pai. “Por ele eu ia estudar até ser uma professora, que eu queria me formar professora, mas fiquei com dó porque o trabalho de roça é muito pesado e ele já tinha também uma certa idade”, justifica.
Rosana de Lourdes Couto Emídio, sua parente e parceira de turma no EJA, precisou parar os estudos ainda mais cedo, pois perdeu a mãe quando ainda era uma menina e teve que assumir os serviços de casa. Apenas os irmãos homens seguiram estudando. “Antigamente os meninos tinham mais vantagem”, comenta.
Seus poucos anos de estudo foram cursados na própria Nicolau Ruiz, que foi construída no interior Retiro Feliz como uma escola comunitária. “Frequentei a escola aqui mesmo, quando nossa escolinha era um cômodo só. Foi meu avô quem doou um pedaço (de terra), daí as próprias pessoas do bairro ajudaram a construir a escola, como voluntárias”, recorda Rosana.
Retiro Feliz ainda é um bairro bem familiar, em uma comunidade rural. Sua ocupação começou com o senhor Nicolau, que deu nome à escola. “Ele comprou uma fazenda e foi repartindo entre os filhos, então aqui temos muitos primos, tios, irmãos”, relata a diretora Ana.
Em maio de 2017, após ampla mobilização dos familiares, a Prefeitura de Tremembé decidiu apoiar a ideia e o sonho da comunidade se concretizou: ao professor Marino de Almeida, que já atuava na rede de Educação há 25 anos, foi designada a tarefa de guiar a primeira turma de EJA da escola.
“Eu cheguei aqui em maio do ano passado. De maio a junho a gente fez dois meses de trabalho preparatório com aulas experimentais, para conhecer a realidade dos alunos. No semestre seguinte começamos o primeiro termo”, diz Marino.
Em agosto, ele assumiu uma turma inicial de 10 pessoas. Hoje são oito e uma ouvinte que cursam o terceiro termo, algo equivalente ao terceiro ano do Ensino Fundamental 1. “O grande desafio que a gente tem com os adultos é o de mobilizar a autoestima, (mostrar) que eles são capazes de aprender”, analisa o professor, que luta para que a turma se mantenha firme e confiante, contra o risco da evasão.
Valorizar inteligências culturais
“Tenho uma aluna no EJA que é avó de aluna e funcionária da escola. Ela começou com uma expectativa que eu me lembro bem: queria saber usar o Caixa Eletrônico e saber preencher uma ficha”, relata Marino. Um dia, ela o chamou e contou orgulhosa: “Você sabe, professor, que eu consegui ler e responder sozinha (a ficha)?”.
A sensação de compreender as letras, de poder ajudar os menores nas tarefas de casa, ou de contribuir mais nos Grupos Interativos é de realização. O mesmo sentimento teve Dona Nica a primeira vez que leu uma fábula inteira sem gaguejar: “foi um sonho realizado!”, comemora.
Para o Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire, que é um dos autores de referência para Comunidade de Aprendizagem, o educador é um “realizador de sonhos”. Ao se ver pela primeira vez como educador de adultos, Marino se descobriu exatamente assim.
O professor defende que os processos educativos partam dos saberes e da experiência das pessoas, com os quais busca estabelecer uma relação horizontal e dialógica. Para desenvolver seu primeiro projeto com o EJA, ele descartou ideias prontas e se propôs a escutar e observar atentamente as necessidades e desejos trazidos pelo grupo. Foi assim que nasceu a ideia de um livro de receitas escrito e publicado pela turma ao fim do ano letivo de 2017.
A ideia surgiu depois que o professor levou suas esfihas em uma festa da escola. A receita ensinada por seu tio rendeu uma série de outras receitas e histórias contadas pelos alunos. Na época, eles estavam interessados pela leitura de crônicas e Marino resolveu, então, juntar as duas coisas: “cada um traz uma receita pra gente montar o livro, só que não pode ser uma receita qualquer, tem que ser uma receita com uma experiência, uma história com um significado emocional”, sugeriu o professor.
O projeto motivou a turma e “acabou costurando o semestre inteiro”, conta Marino. Como as receitas eram passadas por tradição oral, elas não estavam escritas. Então cada um refez a sua, dimensionou as quantidades, ao mesmo tempo em que iam descobrindo as questões de pontuação no processo de escrita. “Por que que é parágrafo aqui? Por que mudou o tempo? E por que que aqui vai dois pontos?”, parafraseia o professor.
“Não foi um trabalho produzido para cumprir programa, ele teve uma participação muito ativa, muito emocional – que trouxe histórias maravilhosas – mas muito técnica também. Eles aprenderam muito”, afirma Marino.
Histórias que têm sabor: acesse aqui o PDF do livro de receitas
“Cada receita era uma história. A minha foi de um pão caseiro que eu aprendi com a minha patroa para quem eu trabalhei durante 10 anos. Eles (a patroa e seu marido) vieram na publicação do livro. Os dois choraram, não acreditavam que eu tinha escolhido a receita dela”, conta Rosana emocionada.
Para Dona Nica, o projeto do livro de receitas abriu a oportunidade para que os alunos pudessem contar de si e trocar experiências. “A gente pode contar um pouquinho do que passou na vida da gente. Eu voltei no passado, quando minha mãe fazia aqueles bolinhos, eu me vi ali ajudando ela a fazer. Foi muito gostoso”, diz.
Ao valorizar suas histórias de vida e Inteligência Cultural, a escola foi capaz de proporcionar uma aprendizagem significativa para que aquelas pessoas, apartadas há tantos anos da possibilidade de estudar, pudessem se sentir pertencentes ao ambiente escolar.
Novos caminhos
“Método” quer dizer caminho. O método organiza uma forma para que a gente possa sair do lugar e caminhar. No processo de alfabetização, cada código que se lê é um caminho que se abre a sua frente.
Um dia destes, na saída para o lanche, um aluno do EJA parou o professor e dividiu com ele uma história que o emocionou. “Professor”, disse ele, “faz uns 16 anos mais ou menos que eu trabalho numa empresa de transporte e eu vou a São José, eventualmente, para fazer entregas. Tem um muro lá, por onde a gente passa toda vida, mas você sabe que essa semana eu reparei e falei pros meus amigos do caminhão: - escuta, tá vendo aquela pintura lá? Aquilo lá é Romero Brito”.
Marino havia iniciado um projeto de arte com o EJA e decidiu iniciar por Romero Brito, aproveitando a popularidade do artista e a possibilidade de introduzir as cores primárias. “Quando um cara olha 16 anos para o mesmo muro e, de repente, ele sabe identificar aquilo ali, isso cria um significado pra ele, lhe permite uma leitura diferente daquele mundo”, acredita o professor.
No EJA, eles realizam também as Tertúlias Dialógicas Literárias, que propõem a leitura compartilhada de livros clássicos da literatura, em que a interpretação da obra é conduzida por cada leitor a partir de sua própria história de vida. Atualmente, a turma está lendo O Mágico de Oz, de L. Frank Baum. “Tem coisa que você tira dali que faz lembrar da sua infância. Você lembra de um tempo de chuva, lembra do espantalho que tinha na horta da sua casa, sabe?”, comenta Rosana.
Às vezes, tem uma coisa que a gente lê que mexe com a gente, define Dona Nica. “Quando eu era criança, deu uma chuva muito feia, uma tempestade horrível mesmo. Daí meu pai colocou a gente debaixo da porta, porque dizem que, se a casa cair, debaixo da soleira da porta não tem perigo de machucar a gente. Lendo a passagem, eu me vi ali, na soleira, de pé, vendo aquele vento arrancando árvore”, recorda.
Como nos ensinou Paulo Freire em seu método de alfabetização experimentado e reconhecido no mundo todo, aprender com as palavras que fazem parte do nosso mundo é um caminho para que a gente aprenda a pensar com a própria cabeça. O tipo de leitura dialógica proporcionado pelas Tertúlias permite que as histórias dos clássicos se encontrem com as histórias trazidas pelo grupo, contribuindo, assim, para a Criação de Sentido.
Seja numa vila de roça ou num bairro de uma grande cidade, é o contexto quem dá sentido para a aprendizagem. Em uma Comunidade de Aprendizagem, escola e comunidade caminham juntas. “Eu não vejo mais a escola sem a comunidade”, resume Ana. “Tenho 14 pessoas maravilhosas na Comissão Mista que participam das reuniões de gestão, me ajudam a decidir sobre as ações da escola, dão ideias”, diz a diretora.
Com esta consciência, a EMEF Nicolau Couto Ruiz se transforma a cada dia e modifica o seu entorno: as estações de leitura e o cinema ao ar livre são alguns dos projetos que se expandiram pelas ruas de Retiro Feliz. “A nossa escola cresceu e se transformou numa escola modelo. É uma escolinha de roça, mas tem criança de fora que vem pra estudar aqui”, diz Dona Nica, satisfeita.
Por: Bárbara Batista