10/01/2019
Tertúlias Artísticas inspiram diálogos profundos na Educação
O contato com a arte na escola, fundamentado pelo Diálogo Igualitário, fortalece vínculos, gera empatia e favorece a convivência em sala de aula
Por Bárbara Batista
Aproximar a arte do campo de referência dos estudantes ainda é um desafio no Brasil. Espaços como museus, teatros ou centros culturais são pouco acessíveis para algumas camadas da população e simplesmente inexistem em determinadas regiões do país. O último levantamento do IBGE, de 2014, mostra que 90% dos municípios brasileiros não têm nenhuma sala de cinema e que 70% deles não possui museu.
Neste contexto, a escola ocupa um papel primordial na democratização do acesso às artes. Nas Comunidades de Aprendizagem, as Tertúlias Dialógicas de Arte ou Musical têm se apresentado como um caminho fecundo para ampliar o repertório cultural de crianças e adolescentes e colocá-los em contato com obras clássicas.
“A Tertúlia Musical não apenas transforma o conceito de ‘ouvir’ música, mas também desmistifica a questão sectária e elitista da música a partir da capacidade universal de interpretação de cada pessoa. Todos temos o direito de escutar”, afirma Danilo Martins de Castro Chaib, professor da Escola de Música de Brasília e pesquisador do CREA, em seu artigo "El aprendizaje dialógico y una nueva dimensión instrumental: la Tertulia Musical". Para o autor, o diálogo é o grande vetor da aprendizagem no século 21.
Como na Tertúlia Literária, mais difundida entre as escolas de CA, a Tertúlia Artística também segue um roteiro baseado no Diálogo Igualitário e na valorização das Inteligências Culturais do grupo. Nela, o contexto de vida e as impressões subjetivas são pontos de partida para a apreciação e a interpretação das obras escolhidas.
“Não se conversava sobre sentimentos na escola”, diz Ana Mae Barbosa, pioneira em arte-educação no Brasil, em entrevista à revista Época. Há quatro décadas ela destaca a importância das Artes na escola como forma de integrar o desenvolvimento intelectual ao afetivo e o emocional. “Um indivíduo com essas três linguagens bem desenvolvidas está apto a conhecer plenamente as outras áreas do conhecimento, a aproveitar mais o mundo que o cerca”, defende a especialista, que foi aluna de Paulo Freire.
A linguagem artística tem este poder de ampliar os sentidos e equilibrar o pensar, o sentir, o perceber, o imaginar e o criar no processo de desenvolvimento de crianças e adolescentes. Por meio da arte, nos tornamos conscientes de nós, do outro e do mundo, isso gera empatia e favorece a interação social e a resolução de conflitos.
Na Comunidade de Aprendizagem, a proposta das Tertúlias Dialógicas Artísticas tem ajudado turmas de diferentes perfis a fortalecer os vínculos e a extrapolar as interpretações individuais. Sua dinâmica favorece o diálogo horizontal e estimula a reflexão coletiva sobre questões da vida cotidiana, mesmo entre crianças pequenas.
Experiência
Antes de introduzir as Tertúlias Artísticas na rotina das escolas municipais de Pedreira, no interior de São Paulo, a técnica pedagógica de Educação Infantil, Patricia Marquezini, decidiu vivenciá-las na prática. Para iniciar, procurou salas de aula de diferentes perfis e localidades. "A ideia não é a equidade e a eficácia de nossas políticas? Então se ela funciona numa escola central ela tem que funcionar numa escola da periferia”, explica Patricia. As Tertúlias se mostraram também boas práticas para inclusão de alunos com deficiência.
As Tertúlias foram conduzidas em sete turmas de Educação Infantil, no período de agosto a novembro de 2017. Com o êxito das atividades, que foram acompanhadas de perto por professores e coordenadores pedagógicos, Patricia conquistou a confiança dos educadores e viu a resistência inicial de alguns colegas se transformar em encanto e entusiasmo. A experiência é tema do paper "Tertúlias Dialógicas na Educação Infantil: literatura, música e artes dialogando com os pequenos", disponível na biblioteca do portal.
As crianças têm um olhar aguçado e estabelecem diálogos profundos no contato com a arte. "Elas observam coisas tão diferentes e tão peculiares que eu mesma voltava à obra, pois não as tinha percebido", relata Patricia. Nas Tertúlias de Artes ela trabalhou com obras de Vincent Van Gogh. Nas Musicais, utilizou "Ode à Alegria", de Beethoven, e "Pedro e o Lobo", de Serguei Prokofiev.
"Ele morava sozinho?", comentou uma das crianças sobre o "Quarto em Arles" de Van Gogh". "Não, pois têm dois travesseiros na cama", observou um colega iniciando uma discussão sobre quem seria(m) o(s) moradore(s) daquela habitação. “O lugar onde ele morava deve ser um lugar muito bonito", comentou alguém, enxergando a obra através da janela, imaginando o verde para além do quarto.
Sentados confortavelmente no chão ou em seus tapetes, com olhos fechados e as luzes apagadas, os pequenos foram convidados a escutar a Nona Sinfonia de Beethoven. “Eles vão acompanhando com o corpinho, com a mãozinha, o som, o ritmo, todos quietos, atenciosos, prestando atenção na música", conta Patricia, enquanto relembra os comentários trazidos pelas crianças.
“Senti uma coisinha aqui no coração bem estranha, muito gostosa”, disse uma delas. "Me deu uma vontade de chorar, não de tristeza, não sei explicar", compartilhou outra. "Essa música é bem diferente, ninguém canta, mas gostei”, comentou uma terceira. Das três modalidades de Tertúlias Dialógicas trabalhadas junto à Educação Infantil, as Musicais, segundo Patricia, foram as que mais mexeram com os sentimentos dos pequenos.
Para além da interpretação de cada obra, nas Tertúlias Artísticas os alunos aprendem a conhecer o outro, a esperar a vez, a testar suas hipóteses, "a observar o tempo de outro jeito", analisa Patrícia. Com esta Atuação Educativa de Êxito (AEE) professores podem trabalhar a oralidade, a interpretação, a autoexpressão e a argumentação das crianças.
Com as Tertúlias nós aprendemos "a não subestimar nossos alunos e a conhecê-los melhor", resume a técnica. Quando os móveis do quarto de Van Gogh remetem ao ofício do avô marceneiro, ou quando a música de Beethoven faz lembrar a viola tocada pelo pai na orquestra de violeiros da cidade, abre-se espaço para que as crianças acessem e compartilhem experiências e saberes próprios. Aprender faz mais sentido assim.
Durante as Tertúlias Musicais realizadas em Pedreira, as crianças descobriram umas com as outras as diferenças entre viola, violino e violão: o número de cordas, o tipo de madeira usado para fazer cada instrumento, os métodos utilizados para a afinação. "Coisas que eu não sabia!", diz Patricia.
No lugar de atividades “prontas” conduzidas pelo professor, nas Tertúlias são as crianças as disparadoras da ação educativa. São elas que escolhem as obras que vão estudar e que decidem o rumo da conversa. Esse reconhecimento das crianças como seres capazes de participar da "gestão do cotidiano" é enfatizado pela formadora de professores, Maria Virginia Gastaldi. "Em tempos de intolerância, aprender a fazer uma vida em comum é muito importante”, acredita Virginia.
Dicas para organizar
A partir da experiência do município de Pedreira, reunimos a seguir algumas dicas para garantir o desenvolvimento das Tertúlias Artísticas na escola.
1. Escolha das obras
Nas Tertúlias, a escolha das obras é feita pelos participantes. Com os alunos do Infantil Patricia fez uma pequena adequação: como o grupo estava entrando em contato com obras clássicas pela primeira vez, ela organizou uma seleção prévia para que escolhessem entre elas qual estudar. A técnica sugere que os educadores fujam das obras que pareçam mais palatáveis ou "mais fáceis para as crianças", ressaltando a grande capacidade de interpretação e argumentação dos pequenos na abordagem de obras complexas. A escolha dos materiais pode ser feita também em diálogo com outras disciplinas, a partir de pesquisas feitas pelos próprios estudantes.
2. Produção de kits
Uma opção econômica utilizada por Patricia Marquezini no município de Pedreira foi a impressão das obras em meia folha no sulfite e um acabamento com papel cartão para aumentar a durabilidade. Os kits de 25 cópias são utilizados como material permanente e circulam as diferentes turmas da Educação Infantil.
3. Acervos virtuais
Na ausência da obra original ou de reproduções em livros, CDs ou DVDs uma boa opção é recorrer aos acervos digitais. Há diversas opções de obras em domínio público liberadas para download e museus do mundo inteiro têm se organizado para disponibilizar coleções digitais de seu acervo, incluindo visitas virtuais em 360 graus. Veja abaixo algumas dicas para usar nas Tertúlias:
- A plataforma interativa Era Virtual disponibiliza a visitação virtual em 360 graus em mais de 20 museus nacionais;
- De Beethoven a Mozart: 46 mil músicas clássicas e 400 mil partituras para download gratuito na International Music Score Library;
- Toda a obra de Van Gogh em alta resolução para download gratuito no site do Museu Van Gogh, que tem sede em Amsterdã, Holanda;
- Museu Metropolitano de Nova York (Met) libera aproximadamente 400 mil obras de seu catálogo digital.